Conhecido por seu livro O Capital no Século XXI, o economista francês Thomas Piketty, 51 anos, volta ao tema do combate à desigualdade em seu novo livro, Uma Breve História da Igualdade (Editora Intrínseca, R$ 69,90). Desta vez, em vez de quase mil páginas, ele tenta organizar seus argumentos de forma mais concisa, em pouco mais de 300 páginas. Para atingir um público mais amplo, decidiu por uma abordagem histórica que organiza seu principal argumento: apesar de todos os problemas que o mundo vive hoje, ele é muito mais igualitário do que era há 200 anos.
Uma das pedras fundamentais da luta pela igualdade é, segundo ele, a Revolução Francesa, em 1789. Isso porque, antes disso, a desigualdade sempre esteve oficialmente costurada ao tecido estatal: ou seja, os homens não eram iguais perante a lei. Não que o problema hoje esteja totalmente resolvido hoje, mas, nos séculos 19 e 20, houve uma série de mudanças importantes para garantir que, ao menos em teoria, todos os homens (e mulheres) passassem a ser tratados de forma mais justa perante a lei.
Entre os eventos históricos posteriores à Revolução Francesa que vieram para combater a desigualdade, o novo livro de Piketty cita a abolição da escravatura – processo que tomou quase um século -, os movimentos sociais pela igualdade racial no século 20, a luta pelo direito das mulheres ao voto e o fim do Apartheid na África do Sul. Entre lutas violentas e mobilizações políticas, o mundo até hoje vê movimentos pela igualdade de gênero, de raça e de orientação sexual, entre eles o Black Lives Matter e o Me Too.
Embora o mundo esteja muito longe do equilíbrio e muitos tipos de desigualdade persistam – entre ricos e pobres, entre brancos e negros, na distribuição de riquezas entre os hemisférios Norte e Sul -, Piketty usa a história para argumentar que a concentração de renda e de direitos mudou para melhor nos últimos dois séculos. A desigualdade, antes institucionalizada, agora se tornou extraoficial, quase clandestina. Isso não quer dizer que ela tenha desaparecido.
É por isso que a redistribuição de renda é um argumento forte de Uma Breve História da Igualdade.
Em entrevista exclusiva ao Estadão sobre o livro, o economista francês afirma que é necessário cobrar que a riqueza do Hemisfério Norte, especialmente a que está concentrada nas mãos de grandes corporações e megabilionários, seja dividida com o Sul. Ele prega que o Brasil pode ter um papel fundamental nesse sentido, podendo ser um dos líderes na busca de compensações para o Hemisfério Sul.
O processo de combate à desigualdade, no entanto, é árduo. Piketty afirma que, como sempre ocorreu ao longo da história, as elites não vão abrir mão de seus privilégios de forma voluntária. “Sempre será uma luta. A elite, seja a aristocracia da França no século 18 ou a classe de bilionários de hoje, sempre vai exagerar sua importância para a sociedade. É algo inerente às pessoas que estão no topo, que sempre se acham fantásticas em sua contribuição para o mundo”, disse ele ao Estadão.
Outro argumento combatido pelo economista é que prega “crescer para dividir”. “Escuto isso muito no Brasil e na América Latina: ‘Vocês da Europa e da América do Norte são países ricos e podem redistribuir, mas a gente precisa crescer primeiro’. Mas não foi isso que aconteceu no Hemisfério Norte. O processo de redistribuição começou em um momento em que a renda média na Europa e na América do Norte era menor do que a brasileira é hoje. Ou seja: isso não era verdade naquela época e não é verdade hoje.”
Para facilitar o entendimento, a entrevista com o economista foi dividida em tópicos.
Leia, a seguir, os principais trechos.
Um livro para todos
Eu escrevi um grande número de livros longos sobre a história da igualdade e da desigualdade. Então, agora, decidi criar um livro mais conciso e curto, o que foi um exercício para mim. Acho que consegui esclarecer algumas mensagens que talvez não tivessem ficado claras anteriormente. O que eu quero realmente enfatizar neste livro é a mobilização política por meio de eventos históricos.
A importância da Revolução Francesa
A Revolução Francesa é um desses marcos. E muitos eventos históricos posteriores, como a abolição da escravatura, vieram para reforçar essa mobilização, ao longo do tempo, em torno da busca por mais igualdade. Ao longo dos últimos dois séculos (19 e 20), isso se intensificou e se tornou mais profundo. E a Revolução Francesa (ainda no século 18) era um movimento não só por mais igualdade política, mas também por mais igualdade econômica.
Enfoque mais amplo
Eu fiquei um pouco intrigado com alguns comentários do livro O Capital no Século XXI. Algumas pessoas reduziram a análise ao fato de que a redução da desigualdade veio por causa da 1ª e da 2ª grandes guerras. Mas houve uma sequência de eventos que levou a isso, e nem todos os eventos que levaram ao movimento em direção a uma sociedade mais igualitária foram cataclismos, como as guerras. Na verdade esse movimento começou antes das guerras, continuou posteriormente e segue até hoje. É claro que os eventos cataclísmicos têm um papel importante na história, mas não são tão decisivos assim.
Movimentos ‘fundadores’
A história que eu conto em Uma Breve História da Igualdade começa na época da Revolução Francesa. (Mais ou menos ao mesmo tempo), em 1791, a revolta dos escravizados em Santo Domingo (território que hoje corresponde ao Haiti e à República Dominicana) foi, de certa forma, o início do fim da sociedade escravocrata. Essas duas revoluções deram início a processos que estão ocorrendo até hoje. É claro que muita coisa já evoluiu, mas ainda há muito a fazer.
Progressos ao longo do tempo
Fizemos um enorme progresso. Tivemos o sufrágio universal para homens no século 19, os sufrágios universais para as mulheres no século 20. Nós tivemos muitos progressos, mas ainda estamos muito longe de uma democracia completa. Depois disso, vimos o processo de descolonização, o movimento de urbanização, o fim do Apartheid, a luta contra a discriminação pelos movimentos sociais americanos (nos anos 1960)… É algo que continua até hoje, com o movimento negro (com o Black Lives Matter) e o Me Too, pela igualdade de gênero.
Otimismo com cautela
É por isso que eu acredito que, ao longo dos últimos dois séculos, houve uma mobilização pela redução da desigualdade em várias dimensões diferentes e que, de maneira geral, foi muito bem-sucedida. Isso nos levou a um mundo mais igual, produtivo e próspero. Eu quero enfatizar essa mensagem de otimismo, porque eu acho que nós precisamos dela nesses momentos difíceis que nós vivemos hoje. Se quisermos definir para onde queremos ir, podemos olhar para trás e ter essa perspectiva.
Resistência das elites
Ao mesmo tempo, sempre será uma luta porque a elite, seja a aristocracia da França no século 18 ou a classe de bilionários de hoje, sempre vai exagerar sua importância para a sociedade. É algo inerente às pessoas que estão no topo, que sempre se acham fantásticas em sua contribuição para o mundo. E não há nenhuma instituição para controlar isso. Então a elite sempre vai tentar justificar os privilégios que tem. Eu fico impressionado com a imaginação que a elite tem para argumentar em favor de suas vantagens.
Suécia = igualdade?
Nesse sentido, o caso da Suécia descrito no livro é fascinante. Hoje nós vemos a Suécia como um país muito igualitário, mas esse nem sempre foi o caso. Até 1910, era um dos países mais desiguais do mundo. Não só o direito ao voto era limitado a 20% dos homens mais ricos, mas, dentro desse porcentual, o peso de cada voto dependia de quão rico cada homem fosse. Até as corporações tinham direito a voto nas eleições municipais. Isso não existe mais, pelo menos não tão diretamente, embora eu acredite que muitas multinacionais adorariam ter poder de voto ao investir em países da África, ou mesmo no Brasil.
Mudanças não são voluntárias
Mas o que aconteceu com a elite sueca? Foi uma história interessante, por não ser tão violenta. Houve mobilizações políticas muito poderosas por meio de movimentos sociais e pelo Partido Social Democrata, que venceu a eleição de 1932 no país. Então, a capacidade estatal da Suécia foi colocada a serviço de um projeto político completamente diferente. Em vez de usar a capacidade do governo de gerar riqueza e dar poder de voto aos mais ricos, eles passaram a usá-la para cobrar impostos progressivamente mais altos dos mais ricos, para que eles custeassem o sistema educacional. Isso foi visto em vários países. E ajudou a construir os sistemas educacionais (em vigência em todo o mundo). E embora a educação esteja longe de ser igualitária e perfeita, ela ajudou a construir uma sociedade mais igualitária e próspera.
Distribuição de renda
Como a elite não redistribui voluntariamente sua riqueza, precisamos de mobilização. Entre as justificativas desse discurso político estão frases como “não podemos pagar por isso”, “nosso país é muito pobre”, “precisamos primeiro crescer para depois redistribuir a riqueza”. Escuto isso muito no Brasil e na América Latina: “Vocês da Europa e da América do Norte são países ricos e podem redistribuir, mas a gente precisa crescer primeiro”. Mas não foi isso que aconteceu no Hemisfério Norte. O processo de redistribuição começou em um momento em que a renda média na Europa e na América do Norte era menor do que a brasileira hoje. Ou seja: isso não era verdade naquela época e não é verdade hoje. Eu acredito que redistribuição de renda é algo bom não só para a redução da desigualdade, mas também em termos de prosperidade e crescimento econômico.
Reparações históricas
Acho os movimentos de reparação importantes, especialmente no que se refere à escravidão e ao colonialismo. Para isso acontecer, seria necessária uma coalizão organizada pelos países do Hemisfério Norte, que impusesse essa pauta de reparação, visando também à mudança do sistema para o futuro. O Estado francês deveria recompensar seu passado colonial (o livro cita o caso do Haiti, que teve de pagar à França por sua independência, evitando assim uma guerra). Mas é sempre uma conta difícil de fazer. E a gente tem que lembrar que o problema continua. É só olhar a questão do aquecimento global, hoje. São os países do Hemisfério Sul que pagam o preço pelas emissões de carbono que foram feitas majoritariamente pelo Norte.
Pressão do Sul
É importante que o Hemisfério Sul receba parte dos impostos cobrados da riqueza gerada pelo Hemisfério Norte. Acho muito importante que os países em desenvolvimento se unam para cobrar propostas concretas, como as prometidas na COP-21, em Paris, em 2015. É preciso dizer: “temos uma terrível inundação no Paquistão, temperaturas muito altas na Índia, e o dinheiro que seria colocado nos fundos relativos ao clima não está lá”. É necessário criar uma regra para isso. Países como o Brasil, a Índia e a África do Sul têm condições de liderar essa coalização global. O Brasil tem um papel muito importante de fazer pressão dentro dessa discussão.
Opinião pública
Hoje, nos países ricos, boa parte da opinião pública se preocupa com a questão das mudanças climáticas e com o que está acontecendo em outros países. Acho que há disposição para ouvir alguma proposta de compensação. É claro que quem se beneficia do sistema atual, como as multinacionais e os bilionários, não serão os proponentes dessas mudanças. Eu realmente acredito na possibilidade de uma aliança no que se refere à questão climática. Isso porque, se uma aliança não ocorrer, as crises climáticas e migratórias vão fazer os países do Norte mudar de ideia.
Papel do Brasil
O Brasil pode cair na tentação de dizer que tem recursos naturais, que vai explorá-los por meio da Petrobras. Que o País precisa crescer e não quer ouvir lições da Europa e dos Estados Unidos sobre o que deve fazer. Consigo entender essa posição, mas a solução que eu estou descrevendo, as multinacionais e os bilionários pagariam uma alíquota internacional. É um sistema do qual o Brasil poderia se beneficiar. Assim, o Brasil poderia se concentrar na proteção da Amazônia, do meio ambiente em geral, e reduzir substancialmente a exploração de recursos naturais.
Fonte
www.infomoney.com.br